Uma discussão sobre os efeitos
colaterais do zolpidem, substância hipnótica usada para induzir o sono,
ganhou espaço nos últimos dias após o incidente relatado pela deputada
federal Joice Hasselmann (PSL-SP), que disse ter acordado em seu
apartamento no último dia 18 com fraturas e hematomas pelo corpo.
Após
o caso, que está sob investigação em Brasília, surgiram inúmeros
depoimentos de pessoas que tiveram crises de sonambulismo, acompanhadas
de apagões de memória e até a ocorrência de acidentes de carro, após o
uso do medicamento. Joice não descarta ter sofrido um atentado.
A
parlamentar disse que, na noite anterior, estava assistindo a uma série
com o marido e tomou seu "remedinho para dormir". Segundo Joice, ele foi
para o quarto, e ela continuou a ver TV, mas não se lembra do que
ocorreu depois. No dia seguinte, acordou no chão, machucada, sem saber o
que aconteceu.
Segundo sua assessoria de imprensa, "os médicos
descartaram a possibilidade de uma queda acidental" ter provocado as
escoriações.
As
câmeras de segurança do prédio onde fica o apartamento funcional da
deputada não registraram a entrada de nenhuma pessoa estranha entre os
dias 15 e 20 de julho, segundo perícia da Polícia Legislativa, que apura
o caso. Laudos também apontam que ela não deixou o apartamento no
período.
O inquérito sobre o caso foi enviado para o Ministério
Público Federal, que pediu novas diligências. A Polícia Civil do
Distrito Federal também fez perícias no local.
Joice negou que as
fraturas no rosto e na coluna, um dente quebrado e os hematomas no corpo
sejam resultado de supostas agressões cometidas por seu marido, o
neurocirurgião Daniel França. O casal disse que processará pessoas que
espalharem o que chamou de ilações sobre violência doméstica.
A deputada revelou em entrevistas fazer uso Stilnox, remédio à base de zolpidem, há cerca de 20 anos.
Desenvolvida
há 30 anos, de início para regular o jet lag de pessoas que fazem
viagens internacionais, a substância é considerada segura pelos médicos
desde que usada de acordo com as indicações da bula, na dose certa e por
tempo adequado.
Entretanto, cerca de 5% dos pacientes que fazem
uso do hipnótico zolpidem estão sujeitos a diminuição ou perda total da
memória (amnésia), especialmente nas quatro primeiras horas após a
ingestão, quando a medicação ainda está na corrente sanguínea.
O
paulistano especialista em marketing Ciro Nardi, 57, está dentro do
pequeno grupo de 5%. Ele, que vive em São Paulo, começou a ter insônia
ao iniciar um trabalho pela internet com uma empresa de Portugal, país
com diferença de fuso horário de quatro horas com o Brasil.
"Passei
a dormir como um bebê com a nova medicação, mas, depois de um tempo de
uso, percebi que estava com problema de memória recente. Minhas filhas
diziam, por exemplo, que eu entrava durante a noite no quarto delas para
brincar, e eu não me lembrava", conta Nardi.
Até que, no início
deste ano, ele acordou ao bater o carro em um poste de madrugada. "Eu
despertei com a batida. Não entendi nada. Não me lembrava de ter saído
da cama, me vestido, aberto a garagem e dirigido ao longo de 12
quadras." Por sorte, ele não se machucou.
A avaliação foi a de que
Nardi estava em um estado de semiconsciência, também chamado de
crepuscular, que se parece com o estágio de transição do sono para a
vigília.
"A pessoa pode fazer e vivenciar coisas, que não ficam
retidas na memória", afirma o psiquiatra Mauro Aranha. Nessa situação,
mesmo parecendo estar acordado, o indivíduo não tem os mesmos reflexos
nem o mesmo raciocínio.
Segundo o psiquiatra, se a pessoa acordar
durante as quatro horas em que o fármaco circula na corrente sanguínea,
ela pode não se lembrar do que fez. "Mas, se despertar quando a
substância não está mais circulando no corpo, provavelmente já estará
consciente dos próprios atos."
A bula do medicamento alerta sobre
"as propriedades farmacológicas do zolpidem, que podem causar
sonolência, diminuição dos níveis de consciência --levando a quedas e,
consequentemente, a lesões severas--, sonambulismo ou outros
comportamentos incomuns (como dormir na direção e durante a refeição),
acompanhado de amnésia".
Há relatos de pessoas que ingeriram o remédio para dormir e acordaram no dia seguinte no chão da cozinha.
Um
advogado que também toma Stilnox, remédio usado pela deputada, e que
pediu à reportagem para não ter o nome revelado disse que relacionou o
cenário narrado por Joice a possíveis reações colaterais da substância
antes mesmo de ela citar o uso do medicamento.
Nas palavras do
advogado, "esse é um remédio que precisa ser tomado na cama e com a luz
apagada", já que há riscos de a pessoa "se levantar no meio da noite e
fazer coisas das quais não vai se lembrar no dia seguinte".
O
advogado relata episódios malucos e até perigosos que vivenciou sob
efeito do medicamento, como fazer macarrão em uma frigideira, deixar o
gás aberto por sete horas e cair no banheiro. Ele diz que só descobriu
os fatos no dia seguinte, ao ver indícios como a cozinha revirada e
escoriações pelo corpo.
Como outros pacientes, o paulistano
especialista em tecnologia da informação Claudio Morales, 54, diz que
não leu a bula antes de iniciar o uso do remédio. Segundo ele, "quem lê
bula não toma nenhum remédio, porque todos têm inúmeras restrições e
contraindicações".
"Tomei o zolpidem por indicação de um amigo",
diz Morales. Estudo realizado pela Sleep Up, startup focada no
tratamento de insônia, mostrou que 35% das pessoas entrevistadas
revelaram que tomam medicamento para dormir sem prescrição médica.
O
profissional de TI apelou para o remédio depois de uma série de
problemas de família --a morte do pai, vítima de um câncer, a separação
conjugal e a demissão--, além da pandemia de Covid-19.
"O zolpidem
me devolveu o sono e aplacou minha ansiedade. Já tive ataque de pânico.
É horrível", afirma ele, que atualmente toma quatro doses diariamente,
duas de dia e duas à noite. "Eu fiquei dependente", admite Morales, que
procurou um médico para se tratar recentemente.
"O zolpidem é mais
adequado e leve que os benzodiazepínicos no tratamento da insônia, mas
isso não quer dizer que possa ser tomado sem indicação médica", diz o
neurocirurgião Pedro Pierro. Segundo ele, o remédio "causa menos adição,
mas também leva à dependência química, se administrado por longo
tempo".
Ainda de acordo com Pierro, muitos pacientes não querem
resolver a causa da insônia e acabam apresentando resistência à mudança
de hábitos, que poderia levar a uma rotina com menos estresse e mais
saudável, condição fundamental para a qualidade do sono.
Em seu
primeiro mandato, Joice foi eleita em 2018, na onda bolsonarista, e
virou líder no Congresso do governo Jair Bolsonaro (sem partido).
Depois, rompeu com o presidente e entrou para o grupo de desafetos do
Planalto.
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