“Uma estrada de terra avança pelo interior de Minas, deixando Três Corações para trás. Morros, vales, pequenas fazendas, plantações de café, fios d’água, casas isoladas, cavalos no pasto, mata-burros, bois solitários, lombadas, curvas, cupins, poeira, mais poeira, ermo. No fim da linha, aparece a casa. Antiga, bonita, sólida, dessas do tempo do café, mas pequena, sem luxos, a provável residência de um baronete remediado.
O prefeito Cláudio Cosme Pereira de Souza está à porta. Apesar do calor, veste mangas compridas. Mostra as portas altas, o pé direito de 11 metros, a louça inglesa das pias, uma saboneteira de bronze. E também o forro comido, as paredes descascadas, as tábuas soltas do assoalho. Caminha devagar, como se suas pernas fossem mais antigas do que ele. Chega à cozinha, onde o esperam a dona da casa, o marido e a filha pequena dos dois e um corretor de imóveis. “Esse é o Gervásio”, diz, meio a troco de nada, apontando o marido, “ele foi muito bonito, fez pornochanchada e comeu todo mundo”. Gervásio, um homem de 58 anos, parece não se lembrar dessa etapa da vida. O rosto é maltratado e a expressão é de quem não está ali, mas acolá. Para susto dos visitantes, ele exclama do nada: “Tamo todo mundo junto!”, e tenta sem sucesso envolver o grupo num só abraço.
De panelas simples sobre o forno a lenha, o prefeito se serve de angu e galinha com quiabo. Senta-se à mesa forrada com uma toalha de plástico. A seu lado, o corretor suga um ossinho. À sua frente, a mulher conta que a filha pequena quer ser modelo, e mostra as fotos tiradas para uma agência de São Paulo. Com ênfase crescente, Gervásio insiste que estamos todos juntos. O prefeito come em silêncio, alheio à cena. Não se altera nem quando ouve o ex-ator dar um murro na mesa e avisar que “Aqui tem muita assombração!” A esposa desmente, admoestando o marido. “Gervásio, estamos vendendo a casa...”
Dr. Cláudio está ali para fechar a compra da propriedade de 50 hectares. Porteira fechada, o que inclui as arcas, os quadros, a saboneteira, os pés de café, a toalha de plástico, uma velha tevê, o aparelho de vídeo e todas as fitas de África, o Último Paraiso Selvagem. Está mais abatido, mais afetado pelo Parkinson que o colheu ainda jovem, bem como pelo fardo de se manter politicamente vivo numa cidade em que se indispôs com quase todo mundo – “com todo mundo não, só com os poderosos”, ressalva.
Naquele primeiro dia de setembro, um sábado, sua situação parecia precária. Na semana seguinte, os desembargadores retomariam o julgamento do impeachment e seus adversários já comemoravam a sua cassação. Os que acreditam que foi ele quem denunciou Fausto Ximenes ao MP –e são muitos-
Não o perdoam por ter conspurcado a imagem da cidade. Sentado num sofá, com Gervásio de pé ao seu lado, ele nega. “Nunca faria isso. A investigação começou em 2009, muito antes de eu chagar à prefeitura. Prenderam secretário meu, de Meio Ambiente, de Administração... Você acha que eu ia denunciar a minha própria gente? Prenderam a cidade inteira, o PIB da cidade foi para a cadeia. Tive que reconstruir a imagem de Três Corações.”
Lembra que a Justiça arquivou duas vezes a primeira denúncia de compra de votos, a qual só teria prosperado agora por obra de seus adversários. Ri quando ouve que o Gordo Dentista negou estar à frente da denúncia. “Você pode confiar numa pessoa que vai à rádio e diz assim: “Você é um chifrudo, você é um corno, tua mulher está te passando pra trás, espero que morra de câncer?” Apesar do placar desfavorável, mantém esperanças. “|O governador Fernando| Pimentel me disse que vai falar com um dos desembargadores que votaram contra, ver se ele muda de ideia. Eu vou reverter.” *
Há mais fadiga do que convicção em sua fala, ele admite. “Estou cansado da administração pública. Essa fazenda é minha aposentadoria precoce, a que tenho direito por causa da doença. Vou transformá-la numa área de produção de vinho. Viti-vi-nícula” diz, acostumando-se com a nova palavra. Gervásio o abraça. “Tamo todo mundo junto!” Dr. Cláudio se levanta e, devagar, caminha até a picape. “Bolsonaro tem que matar coisa ruim!”, ainda grita da soleira da porta, o ex-ator pornô. É a última coisa que se ouve dentro do carro que se afasta
* Não estava errado. A votação estava em 4 a 2 quando o segundo vogal, o juiz Antônio Augusto Fonte Boa, alterou o voto para que fosse negado o recurso do processo. Com isso, a votação ficou em 3 a 3. Uma licença médica adiou o voto de minerva do presidente da Turma. Até o fechamento desta edição, o placar permanecia empatado. Mas isso, claro, Dr. Cláudio não podia saber em1º de setembro.
João Moreira Salles - Piauí Outubro/2018
Nota deste Blog. A próxima entrevista da revista Piauí será a do Gordo Dentista