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terça-feira, 3 de setembro de 2019

Animais são seres sencientes



O Plenário do Senado Federal aprovou o PL 27/2018, que teve origem na Câmara dos Deputados, visando criar o regime jurídico sui generis de sujeitos de direitos despersonalizados para os animais que, até então, pela legislação vigente nos crimes ambientais (Lei nº 9.605/ 1998), recebiam a consideração civil de bens móveis e eram considerados coisas.[1] Doravante, com a aprovação legislativa, uma vez que o texto foi modificado, irá retornar à Câmara para análise dos deputados, os animais serão alçados à categoria de seres sencientes, dotados de emoção e sentimento. Nem todos os animais, no entanto, foram abrangidos pela proposta protetiva. São excluídos os destinados à produção agropecuária, os utilizados nas pesquisas científicas e os que participam das manifestações culturais integrantes do patrimônio cultural brasileiro, como a vaquejada, por exemplo.

Fica cada vez mais evidenciada a realidade dinâmica que reveste o Direito. Na medida em que novas interpretações são feitas às normas jurídicas, incluindo nelas recentes valores ligados à cultura social, há um notável avanço da civilização. Com o novo status, os animais ficam equiparados, no tocante à sensibilidade, aos homens, porém cada um carregando as diferenças específicas relacionadas a seus interesses e necessidades. O ser humano é dotado de inteligência, volição para se definir diante das circunstâncias, com capacidade suficiente para projetar seus objetivos e traçar metas para atingi-los. O animal, por sua vez, deixa a categoria de coisa e ingressa na especial de seres sensíveis, com capacidade suficiente para demonstrar emoções, como o sofrimento e angústia, além de receber a tutela necessária de proteção à vida, à segurança e ao seu bem-estar.

É incontroverso negar a superioridade do ser humano, que é um fim em si mesmo, tendo à sua disposição tudo que se encontra na natureza, de acordo com a teoria do antropocentrismo. Mas, também é de se constatar, no âmbito doméstico, a relação de afeto entre a pessoa e o animal. Tanto é que, em recentes decisões envolvendo separação de casais, os tribunais vêm concedendo a guarda compartilhada de animais de companhia. Além do que a própria lei confere proteção geral quando estabelece sanção penal para aquele que praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos.

A palavra senciência não guarda afinidade etimológica com a palavra sapiência. Ambas carregam raízes provenientes do latim. Enquanto sapiência (sapere) tem o significado de inteligência, conhecimento, senciência (sentire) tem o significado de sentir, ou na capacidade de sentir. Então, quando se fala agora da futura novatio legis em respeito à sensibilidade do animal, deve compreender que se trata de um ser vivo, detentor de uma vida incorporada à dignidade de sua natureza. Quer isto significar que, assim como o humano estabeleceu suas regras e quer ser bem tratado, de igual forma o animal, pelo regramento natural, quer idêntico tratamento.

Assim, o atributo da dignidade, que antes era conferido exclusivamente ao humano, devidamente legitimado pela sua natureza de ser pensante, guardadas as proporções, alcança o animal em razão da sua própria existência como ser vivo. A vida, desta forma, em suas diferentes modalidades, por si só, passa a ser o fato gerador da dignidade. Tal equiparação faz com que novas regras de convivência sejam criadas e, principalmente, as que evidenciam o respeito à sensibilidade animal. Cervantes, como que antecipando tal evolução, no diálogo mantido entre dois cães, Berganza e Cipião, assim o primeiro deles se manifesta: “É bem verdade que, no decurso da minha vida, diversas e muitas vezes ouvi contarem grandes vantagens nossas: tanto que parece que alguns quiseram entender que temos um natural diferente, tão vivo e tão agudo em muitas coisas, que dá indícios e sinais de faltar pouco para mostrar que temos um não sei quê de entendimento capaz de discurso.”[2]

Nessa perspectiva, o homem revestido da dignidade carrega consigo uma carga de direitos e deveres que propulsionam a busca da perfeição - pelo menos é a meta primordial da humanidade - e, nessa trajetória, compreende o relacionamento com o reino animal. Se for insensível com aquele que é sensível, numa desastrosa colidência, ultrapassando os limites do humano, demasiadamente humano apregoado por Nietzsche, certamente estará descumprindo regra básica e fundamental de convívio harmônico. Baertsch elucida a esse respeito, em exemplar magistério: “É o que chamamos de doutrina dos deveres indiretos: os deveres que temos em nosso trato com os animais são deveres diretos em relação às pessoas (nós mesmos - dever de perfeição - e outrem – dever de benevolência) e são, ao mesmo tempo, deveres indiretos em relação aos animais."


Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de justiça aposentado, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.


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